From Amazonia to the world: retelling the Nawa story

29 January 2025
POSTED IN News

Interview Ι The Nawa people have been fighting for more than two decades for the recognition and demarcation of their ancestral territory in the Amazon region of Acre. Currently affiliated with the National Museum/UFRJ, Ykaruni Nawa arrived at the British Museum to retell the Nawa story and ended up making history by becoming the first indigenous person from Latin America to participate in the International Exchange Program (ITP).

Read this interview with Ykaruni Nawa in English at the British Museum’s website, or continue scrolling for the Portuguese version.

Após o devastador incêndio de 2018, que destruiu quase por completo o maior acervo dos povos indígenas no país, curadores e pesquisadores indígenas como Ykaruni Nawa têm desempenhado um papel fundamental na revitalização do Museu Nacional, contribuindo para reconstruir suas coleções etnográficas a partir de perspectivas e narrativas próprias. Graças a uma colaboração contínua entre o Centro de Pesquisa Santo Domingo para a América Latina (SDCELAR) e o Museu Nacional, Ykaruni Nawa foi convidado a participar do Programa Internacional de Intercâmbio (ITP) do Museu Britânico em 2024 e contribuir com o estudo e a requalificação da coleção do Rio Juruá, na região do Acre, na Amazônia brasileira.

Na entrevista oferecida à antropóloga e chefe do SDCELAR, Louise de Mello em agosto de 2024, Ykaruni conta sobre essa experiência de colaboração e explica sua importância. 

O ITP ou International Training Programme é um programa de desenvolvimento e intercâmbio de capacidades oferecido cada ano pelo Museu Britânico e destinado a profissionais que atuam nas áreas de museologia e patrimônio em todo o mundo. 

Ykaruni Nawa analisando a coleção do rio Juruá na reserva técnica do Museu Britânico. Foto: SDCELAR, julho de 2024.

 

Louise de Mello: Fale um pouco sobre você, sua trajetória até chegar ao Museu Britânico e o trabalho de cocuradoria que você vêm desenvolvendo com o Museu Nacional no Brasil. 

Ykaruni Nawa: O trabalho intenso que perpassa a minha trajetória até chegar ao Museu Britânico, principalmente na relação de cocuradoria que venho desenvolvendo no Museu Nacional do Brasil, é um trabalho indígena, étnico e coletivo. Eu venho de um povo considerado extinto no Brasil por 100 anos no século passado, produto de uma colonização extremamente violenta. Sobreviveram apenas duas pessoas do meu povo e hoje eu sou o primeiro indígena do meu povo a chegar no nível mais alto de conhecimento do branco, que é o doutorado. Se hoje estou aqui foi por permissão dos meus ancestrais e das minhas lideranças. Enfrentei muitos desafios por ser o primeiro, mas eu tinha um objetivo que era recontar nossa história, que foi contada pelo branco. Para fazer isso, precisei estudar Jornalismo e depois seguir na área da Antropologia, que é meu mestrado e atualmente meu doutorado. Como essa história nunca nos representou, eu cheguei também até o Museu Nacional do Brasil, onde faço meu doutorado, para reescrever essa história local, que tem impactos nacional e internacionalmente, porque meu povo foi uma das peças centrais no período da borracha para abastecer os mercados internacionais no período da revolução industrial. Trabalho diretamente com minha comunidade em um movimento de documentar nossas narrativas, processos de produção de materiais de barro, fibra e cipó e registro dos conhecimentos dos mais velhos, para que não possamos mais perder esses conhecimentos e que eles possam ser repassados para as gerações, para que nunca mais nos nomeiem como povo extinto e para que os conhecimentos e a identidade do povo Nawa se perpetue.

 

Ykaruni Nawa na escola Stafford House London, onde realizou um curso intensivo de inglês com uma bolsa de estudo oferecida pela agência de intercâmbio International Schools (Brasil). Foto: SDCELAR, julho de 2024.

 

Louise de Mello: Quais são os principais desafios enfrentados na atualidade tanto por você, enquanto indígena, como pelos Nawa, enquanto povo, e que papel os museus podem ter em contribuir a superar alguns desses problemas? 

Ykaruni Nawa: Nosso principal desafio hoje, meu e do meu povo, é o reconhecimento do nosso território. Como nos dizem as lideranças no Brasil, a mãe terra é a mãe de todas as lutas, e a luta do meu povo Nawa é, sem sombra de dúvida, a luta pela demarcação do território. Por conta disso, nós indígenas temos feito a nossa autodemarcação – é dizer que a demarcação do nosso território tem que partir da nossa percepção de território e territorialidade. Autodemarcação, hoje, não é apenas demarcação física e geográfica de uma terra, e o meu grande desafio é levar adiante esse pensamento das lideranças. É dizer que autodemarcação também é autodemarcar conhecimento; autodemarcação é chegar no Museu Britânico e qualificar melhor a descrição das peças do meu povo que estão na reserva técnica; autodemarcação é encontrar mais peças dentro da coleção, por reconhecer que as técnicas são parecidas, e aumentar a coleção de 12 para 14. Autodemarcação é aprender uma língua estrangeira, dominá-la, e reescrever a história nessa outra língua, alcançando outras pessoas pelo mundo. Autodemarcação é fazer não apenas com que eu tenha acesso ao museu, é fazer com que ele chegue na minha comunidade e de lá as minhas lideranças e meu povo consigam mudar os rumos da história aqui fora. Autodemarcação é mediar as relações entre o mundo do branco e o mundo indígena, de forma que garanta o bem-estar social de uma população minoritária que tem tanta contribuição para garantir o planeta vivo. Autodemarcar é pressionar para mudar estruturas e se os museus precisam de mudança, nós precisamos autodemarcá-los. 

Os Nawa nunca foram extintos
“O povo Nawa está localizado, hoje, no Parque Nacional da Serra do Divisor, no município de Mâncio Lima, no Acre, Brasil. Vivemos às margens dos igarapés Novo Recreio, Jezumira e Boca Tapada, afluente do rio Môa. Porém, não foi sempre assim. Nós morávamos às margens do rio Juruá, o principal rio que dá nome a região do Acre chamada Vale do Juruá. Éramos muitos nas margens daquele rio, porém a invasão para transformar nossas terras em grandes seringais para produção da borracha quase nos dizimou. O genocídio pelo qual meu povo passou reduziu meu povo a duas mulheres sobreviventes. Uma delas, Mariruni, é minha tataravó, e foi nomeada como a “última sobrevivente Náua”. Os não-indígenas invadiram nossas terras para produzir borracha para a Europa, mataram nosso povo e nos nomearam também de forma errada, porque não somos “Náua” de origem. Nossa origem é Kapanawa. Hoje, porém, nos afirmamos politicamente como Nawa, reconhecendo nossa origem e parentes que ainda sobrevivem no Peru: os Kapanawa. Lá eles continuam sendo Kapanawa e no lado brasileiro passamos a nos reconhecer como origem da anta (Awa), sendo, pois, um povo que passou pela transformação após a invasão.”
—Ykaruni Nawa, 2024

Louise de Mello: Conte mais sobre o trabalho de documentação participativa e cocuradoria que você está desenvolvendo junto ao SDCELAR  

Ykaruni Nawa: O trabalho de documentação participativa e cocuradoria junto ao SDCELAR é o que eu poderia chamar de autodemarcação de museus. No passado, nossas lideranças lutavam com arcos, flechas, bordunas e tacapes e todas essas peças se tornaram peças fundamentais dentro dos museus para falar de povos indígenas; hoje, nós lutamos com outras ferramentas: lutamos com a caneta, com o computador. Nossa principal atuação hoje é pela escrita, porque acreditamos que a escrita produz conhecimento, conhecimento é poder e o conhecimento transforma mundos, pessoas e estruturas. Por isso chego no SDCELAR para lutar com essas ferramentas que dominei e que sei manusear: a escrita. O trabalho no SDCELAR tem sido uma das grandes experiências de valorização de conhecimentos locais e das comunidades que os detêm, porque na medida que o SDCELAR chama para o diálogo eu e minha comunidade, ele reconhece nossos conhecimentos como válidos e legítimos. O papel do SDCELAR impacta localmente a ponto de minhas lideranças fazerem uma reunião com as 98 famílias do meu povo para dizer o trabalho que eu estava fazendo aqui; quer dizer, tem impactos locais de transformação positiva de um povo, porque agora minhas lideranças sabem que aqui nesse museu tem peças nossas – o que antes elas não sabiam. É dizer, o Museu Britânico também é do povo Nawa. O trabalho aqui junto ao centro acaba mediando todo processo de recontagem de história, impulsionamento de autonomia e autodeterminação, reconhecimento de conhecimentos e faz com que nós sejamos protagonistas das nossas próprias narrativas. 

A coleção do rio Juruá
A coleção do rio Juruá foi comprada pelo Museu Britânico de J.H.A. Meech em 1914, junto com outras 134 peças procedentes do oeste amazônico no Brasil e no Peru. Em pleno ciclo da borracha, a coleção está composta por 14 peças, incluindo um cocar, ou kūka nanī na língua nawa, e apresenta uma presença marcante de arcos (xiã) e lanças (bãçã) feitas de madeira paxiúba. Até os dias de hoje, as lanças mantêm uma importância significativa para o povo Nawa; as “lanças da demarcação” representam a luta pelos direitos territoriais, simbolizando conquistas relevantes ao longo desse moroso processo. Fruto da colaboração com Ykaruni Nawa, a coleção do rio Juruá foi disponibilizada no Acervo Online do Museu Britânico.

Louise de Mello: Qual é a importância para o povo Nawa e para a sua comunidade você estar aqui no Museu Britânico e realizar esse (re)encontro com as coleções da Amazônia, e do Rio Juruá? 

Ykaruni Nawa: Estar no Museu Britânico é uma das grandes conquistas do meu povo, que hoje vive no Parque Nacional da Serra do Divisor, na Amazônia brasileira. É uma conquista pelo que o Museu Britânico representa do ponto de vista de contar uma história mundial e pelo público que ele alcança. Durante todos os dias que eu estive aqui, minhas lideranças mandaram mensagem quase todos os dias perguntando como eu estava, se estava me sentindo bem, porque meu povo sabe que não conseguimos lutar se não estiver fortalecido pelo apoio daqueles que estão no território. Antes de vir eu não sabia o que ia encontrar. Apenas sabia que existia uma coleção da minha região, que é o Juruá, no extremo oeste do país, na fronteira com o Peru. Quando cheguei e tive acesso à coleção, me surpreendi. Lembrei automaticamente da nossa parenta do povo Tupinambá, Glicéria, que foi fundamental para a restituição do manto tupinambá. Glicéria disse que o manto falou com ela e quando vi as 12 peças em cima da mesa, senti ali que as peças falavam comigo, por toda a ancestralidade que elas carregam. Quando mostrei as peças pras minhas lideranças, sem apresentar nenhuma das minhas percepções, minhas lideranças foram categóricas em dizer que aquelas peças pertenciam ao meu povo, porque até hoje mantemos o mesmo conhecimento, a mesma prática e dominamos a mesma técnica. Tudo isso foi fundamental para autodemarcar essas peças. E autodemarcar não é apenas dizer que as peças são nossas, mas que elas precisam de uma descrição correta para o real sentido que elas foram produzidas.

 

Ykaruni Nawa na exposição permanente da Amazônia no Museu Britânico (galeria 24). Foto: SDCELAR, julho de 2024.

 

Louise de Mello: O que significa para você ser o primeiro participante indígena da América Latina no Programa de Formação Internacional (ITP) do Museu Britânico? 

Ykaruni Nawa: Ser o primeiro indígena da América Latina no ITP representa, atualmente, uma das minhas maiores conquistas e enfrentamento de desafios. Eu venho de uma região no Brasil que sofreu bastante pela falta do letramento formal e que impactou a baixa presença dos meus parentes em espaços de poder, como a universidade por exemplo. Logo, pelo pouco acesso à educação, os não-indígenas contaram a nossa história no nosso lugar. Estar pela primeira vez na minha trajetória em um programa internacional é a demonstração da nossa resiliência, capacidade de adaptação e a oportunidade de passar a mensagem que não aceitamos mais que contem a nossa história sem a nossa presença. Estar aqui é um momento de perceber que o Brasil é pequeno para a narrativa que queremos recontar; que nossas narrativas precisam ir além-mar, assim como os colonizadores fizeram ao levar a narrativa deles para nosso território ancestral e acabar adoecendo a terra. Nossas lideranças mulheres ensinam que nossa narrativa cura a terra e se chego até aqui é para também curar a terra dos males que tanto nos afetou por meio da colonização.  

//

Se nós somos a floresta e essa floresta está sendo ameaçada pelas mudanças climáticas, nós também estamos sendo ameaçados: toda nossa cultura e conhecimentos são o que fazem o mundo ser diverso e bonito. Que a juventude que se levanta como liderança nesse século possa promover a mudança dessa situação e continuar lutando para a visibilidade dos nossos povos; e que os não-indígenas se sintam aliados na causa dos povos indígenas, que é uma causa de todos nós.
—Ykaruni Nawa, 2024

//

Further Reading:
* CORREIA, Cloude de S. Nawa. Instituto Socioambiental, 2018.

* NAWA, José Tarisson C. S. “Os Nawa nunca foram extintos”: regimes de memória, trajetórias indígenas e narrativas sobre os Nawa do vale do Juruá, Acre. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2023. 

Read the interview in English at the British Museum’s website

Ykaruni Nawa, indígena Nawa (Acre), é jornalista, curador e antropólogo. É doutorando no Museu Nacional/UFRJ, onde obteve um mestrado em Antropologia Social e tem colaborado como curador das coleções etnográficas desde 2020. Ykaruni é cofundador da Articulação Brasileira de Indígenas Jornalistas (Abrinjor) e atualmente atua como repórter na DPU, promovendo visibilidade e representatividade para povos indígenas. 

Publications related to women’s and maternal health with Wixárika communities by the author of this exhibition

 

Gamlin, Jennie B. (2013)
Shame as a barrier to health seeking among indigenous Huichol migrant labourers: An interpretive approach of the “violence continuum” and “authoritative knowledge”
Social Science and Medicine 97 75-81

Gamlin, Jennie B. (2023)
Wixárika Practices of Medical Syncretism: An Ontological Proposal for Health in the Anthropocene
Medical Anthropology Theory 10 (2) 1-26

Gamlin, Jennie B. (2020)
“You see, we women, we can’t talk, we can’t have an opinion…”. The coloniality of gender and childbirth practices in Indigenous Wixárika families
Social Science and Medicine 252, 112912

Jennie Gamlin and David Osrin (2020)
Preventable infant deaths, lone births and lack of registration in Mexican indigenous communities: health care services and the afterlife of colonialism
Ethnicity and Health 25 (7)

Jennie Gamlin and Seth Holmes (2018)
Preventable perinatal deaths in indigenous Wixárika communities: an ethnographic study of pregnancy, childbirth and structural violence BMC
Pregnancy and Childbirth 18 (Article number 243) 2018

Gamlin, Jennie B. and Sarah J Hawkes (2015)
Pregnancy and birth in an Indigenous Huichol community: from structural violence to structural policy responses
Culture, health and sexuality 17 (1)

Facebook
Twitter
LinkedIn
Pinterest
WhatsApp
Email