Às margens do Araguaia: Refundando as coleções Iny-Karajá na Amazônia

18 de Junho 2025
BY Rafael Andrade, Louise de Mello, Sokrowé Karajá, Ixysé Karajá, Santiago Valencia Parra| POSTED IN Amazônia, Todos Os Projetos

O Museu Britânico abriga uma das coleções mais antigas dos Iny-Karajá após o incêndio que atingiu o Museu Nacional no Brasil em 2018. Essas coleções nunca haviam sido estudadas – até agora.

Este projeto se propõe a requalificar essas importantes coleções de forma dialógica, em colaboração com especialistas em instituições brasileiras, lideranças Iny-Karajá e membros interessados da aldeia Santa Isabel do Morro Hawaló, na Ilha do Bananal (TO) na região amazônica. Graças a uma parceria com o Museu Nacional (MN/UFRJ) e o Museu Antropológico da Universidade Federal de Goiás (MA/UFG), este projeto de museologia compartilhada promoverá a reinterpretação e digitalização deste importante acervo composto por cerca de meia centena de peças, que foram coletadas durante mais de um século e adquiridas pelo Museu Britânico entre as décadas de 1860 e 1980.  

O projeto busca assim documentar as distintas coleções bem como suas diferentes trajetórias até o Museu Britânico, representando as historicidades, cosmovisões e os conhecimentos tradicionais dos Iny-Karajá, iluminando ainda materiais de procedência incerta coletados em seus territórios ancestrais e áreas adjacentes nos vales do Araguaia e Tocantins. Essa documentação participativa se deu por meio da visita às coleções por parte dos colaboradores do projeto e oficinas de interpretação e co-curadoria em campo com o objetivo de selecionar objetos para a exposição permanente atual da Amazônia bem como futuras galerias, promovendo a autorrepresentação e reconstruindo narrativas de forma coletiva. Este projeto espera produzir insumos para a aldeia Hawaló que poderão ser usados com fins didáticos na escola indígena local. Além disso, todas as imagens e dados atualizados sobre o acervo do Museu Britânico serão compartilhados com as instituições parceiras do projeto, com destaque para o Museu Nacional, a fim de contribuir para a refundação digital do acervo Iny-Karajá perdido pelo devastador incêndio de 2018.

 

Os Iny-Karajá e o rio Araguaia 

Os Iny-Karajá são habitantes imemoriais das margens do rio Araguaia entre os estados de Goiás, Mato Grosso, Tocantins e Pará no Brasil Central. O grande rio Araguaia faz parte da bacia amazônica e está em uma região de transição entre o cerrado (savana brasileira) e a floresta. Na língua Inyrybè (Macro-Jê), há uma variação linguística entre a fala do homen e da mulher. Berakuhyky é o nome do rio Araguaia na fala das mulheres, ou Berohoky na fala dos homens. Segundo o linguista Iny, Sinvaldo Wahuá, a fala das mulheres tem maior complexidade linguística em relação à fala dos homens, mantendo uma forma mais formal e erudita da língua.

A matriarca Kaimote Kamaiurá ensina o nome do rio Araguaia na fala das mulheres: Berakuhuky.

Por longo período a etnologia classificou os Karajá como um grande grupo indígena que se dividia em três subgrupos falantes da língua inyrybè que habitam a mesma região do médio rio Araguaia e compartilham formas de organização social e cultural semelhantes entre si: os Karajá propriamente ditos, os Xambioá e os Javaé. No entanto atualmente as lideranças indígenas reivindicam que se trata de três povos distintos, apesar de terem semelhanças significativas. Desse modo, um dos principais movimentos recentes, sobretudo entre o povo Iny-Karajá, tem reivindicado o uso da autodenominação Iny, como maneira de se referir ao que outrora era conhecido como os Karajá propriamente ditos. Por esse motivo as pesquisas mais recentes adotam a denominação Iny-Karajá como uma forma de marcar o processo de transição para a autodenominação que é reivindicada pelos indígenas. 

 

As aldeias Iny-Karajá estão localizadas em sua maioria na Ilha do Bananal, no estado do Tocantins, Brasil. Dentre as principais aldeias estão Fontoura e Santa Isabel do Morro, com população aproximada de 1.000 pessoas cada. A aldeia Santa Isabel do Morro foi fundada depois da chegada do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), agência indigenista criada em 1910 no Brasil. Em 1926 o SPI fundou um posto indígena na Ilha do Bananal próximo à foz do rio das Mortes que deságua no rio Araguaia, incentivando a formação de uma aldeia Iny-Karajá por famílias que estavam no entorno, dando origem a então conhecida aldeia Santa Isabel do Morro, hoje uma das aldeias mais importantes do povo Iny-Karajá.

As coleções Iny-Karajá no Museu Britânico 

O acervo Iny-Karajá no Museu Britânico é composto por cerca de 60 objetos, coletados ao longo de mais de um século entre o final da década de 1860 e o final da década de 1980, por diferentes indivíduos. A coleção de Robert Marsham, doada ao Museu Britânico juntamente a outros 500 objetos da América do Sul e de outras partes do mundo, é quiçá a mais antiga, incluindo pelo menos 13 artefatos trocados pessoalmente com os Karajá no século XIX. A correspondência de Christy, disponível no Arquivo Pictórico da África, Oceania e Américas do Museu Britânico, fornece informações sobre a coleção amazônica doada por Marsham em 1871: Os arcos e flechas, bordunas, trompetes, adornos de penas e brincos foram obtidos por mim por meio de escambo em 1858 com as tribos de índios Caranje e Apinaje, que habitam as margens do rio Tocantins, um grande rio que flui para o norte desde o Brasil Central e se une ao Amazonas na sua foz, perto de Belém. As tribos Caranje e Apinajé vivem rio acima, por volta da latitude 7 graus sul.”


As coleções Karajá do Museu Britânico, Foto: Santiago Valencia Parra, Setembro de 2024

Outro conjunto de objetos datando de meados do século XIX foi doado pelo engenheiro britânico William Bragge em 1869. Bragge doou ao Museu Britânico um arco e três flechas associados a dois povos do rio Araguaia: os Karajá e os que ele denominou erroneamente como “Botocudos” — termo genérico e colonial usado para alguns povos indígenas que utilizavam o botoque como adorno labial. Essas informações situam esses objetos entre as coleções etnográficas Iny-Karajá mais antigas após o incêndio no Museu Nacional do Brasil.


Ata de registro da coleção Karajá adquirida pelo Museu Britânico em 1932. 

Outra coleção relevante foi coletada por Roger Gamelyn Pettiward, cartunista que viajou à região do Mato Grosso em 1932, em uma expedição liderada por Peter Fleming com o objetivo de buscar o Coronel Percy Harrison Fawcett, que se tornou conhecido após desaparecer em uma expedição à Amazônia Central em 1925, sem jamais ser encontrado. A maioria dos materiais coletados por Pettiward durante essa expedição de busca está associada aos ‘Karajá’, com pelo menos 29 objetos, além de alguns itens relacionados aos Kayapó e Tapirapé ao longo do vale do rio Araguaia. 

Leia mais sobre a expedição de busca do Coronel Percy Fawcett organizada por Peter Fleming no recorte de jornal publicado em 1932 aqui (EthDoc 1359, Arquivo Documental do Museu Britânico @Trustees of the British Museum).

Você sabia?
Acredita-se que o explorador britânico Percy Fawcett teria servido como inspiração para o personagem Indiana Jones. Mais recentemente, essa expedição foi dramatizada por Hollywood em 2016 no filme “Z – A Cidade Perdida” (The Lost City of Z), no qual Charlie Hunnam faz o papel do Coronel Fawcett. 

Também merecem destaque três bonecas de argila doadas por Warren Royal Dawson em 1938. Belos exemplares das bonecas ritxoko Iny-Karajá jorram luz sobre as práticas ocidentais de colecionismo e os sistemas de valor atribuídos à cultura material indígena, tendo sido erroneamente associadas a ídolos de fertilidade pré-históricos, como a deusa Vênus, e classificadas de forma equivocada como marcadores de primitivismo. Os Iny são um dos únicos povos indígenas das terras baixas da América do Sul que fazem uma representação artística da figura humana. Produzidas exclusivamente por mulheres, as bonecas ritxoko (ou ritxoo na fala dos homens) eram originalmente feitas como objetos lúdico-pedagógicos para as crianças Iny. Ao representarem a vida ritual, social, cotidiana e cosmológica Iny, as bonecas são uma forma de ensinar e transmitir conhecimento sobre as tradições e modos de vida Iny para as crianças, tanto meninos como meninas. Nas últimas décadas, estas bonecas passaram a ser importantes fontes de renda para as famílias de ceramistas ao se tornarem objetos de grande interesse entre não indígenas até se converterem em patrimônio nacional imaterial do Brasil.  


Am1938,0705.4, Foto: Rafael Andrade, Maio 2024. © The Trustees of the British Museum.

Por uma museologia compartilhada: A relação dos Iny-Karajá com os museus 

É longa a relação entre os Iny-Karajá e os museus. O rio Araguaia é alvo de grandes expedições desde o século XIX, que reuniram coleções para museus em diferentes partes das Américas e da Europa.  A coleção Iny-Karajá do Museu Nacional se remete às origens da instituição, iniciando no século XIX e ampliando-se até o ano de 1908, primeiro período de colecionamento em que houve 15 entradas e um total de aproximadamente 500 peças Iny-Karajá. Um segundo momento de colecionamento expressa bem o período de crescimento exponencial do acervo etnográfico do Museu Nacional, que com 23 entradas de coleções Iny-Karajá somou ao acervo aproximadamente 800 objetos entre 1914 e 1948. Por fim, entre 1951 e 1996, houve 11 entradas com cerca de 400 objetos, somando aproximadamente 1.700 objetos Iny-Karajá no acervo do Museu Nacional até o incêndio de setembro de 2018.  

As coleções Iny-Karajá são, portanto, parte indissociável da história de mais de duzentos anos do Museu Nacional, acompanhando as oscilações internas, as discussões e redefinições de estratégias de pesquisa e campos de interesse desta que é a instituição científica mais antiga do Brasil. De forma paralela, o engajamento de famílias da aldeia Santa Isabel do Morro nas discussões sobre patrimônio, museus e coleções também se remonta à origem da aldeia na década de 1920. Muitas das coleções que se encontram em museus etnográficos hoje foram formadas, em grande parte, nesta aldeia, sendo, portanto, os museus uma importante rede de relações para as lideranças indígenas Iny-Karajá (ver, Andrade, 2023). 

Considerando os trabalhos mais recentes sobre cultura material e coleções Iny-Karajá, há engajamentos neste sentido ao menos desde 2010, envolvendo lideranças de Santa Isabel do Morro, o Museu Antropológico (MA) da Universidade Federal de Goiás (UFG) e o Museu Nacional (MN) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Um dos primeiros trabalhos foi o processo de patrimonialização das bonecas de cerâmica Iny-Karajá pelo governo brasileiro, resultado de um esforço coletivo envolvendo as ceramistas Iny-Karajá de diferentes aldeias e pesquisadores do MA-UFG. O trabalho iniciado foi aprovado pelo governo brasileiro, que em 2012 registrou o modo de fazer as bonecas Iny-Karajá como patrimônio imaterial do Brasil (Lima et.al, 2011).  

Em seguida houve uma exposição no MN-UFRJ intitulada “Os Karajá: Plumária e Etnografia”. A exposição foi inaugurada em 2012 com curadoria do Prof. Dr. João Pacheco de Oliveira, que contou com a avaliação de lideranças Iny-Karajá que participaram com o apoio e mediação do Prof. Dr. Manuel Ferreira Lima Filho do MA-UFG. A inauguração da exposição no Rio de Janeiro foi um evento importante que contou a presença de alguns representantes das famílias Iny-Karajá que participaram do processo. 

Uma série de projetos foram desenvolvidos desde 2014 sob a coordenação do Prof. Dr. Manuel Ferreira Lima Filho da UFG que envolvia o estudo das coleções Iny-Karajá do MN e a pesquisa de campo nas aldeias no Araguaia. Dessa maneira os trabalhos tiveram como foco o compartilhamento e a elaboração de reflexões conjuntas com as famílias Iny-Karajá que estavam interessadas no tema das coleções. Foram muitos os resultados de um esforço amplo e coletivo envolvendo as aldeias Iny-Karajá e pesquisadores de diferentes instituições, sobretudo MA-UFG e MN-UFRJ. Os principais resultados desses trabalhos podem ser acessados na coletânea ‘Tesouros Iny-Karajá’, organizada por Manuel Ferreira Lima Filho.


Visita ao Museu Antropológico da Universidade Federal de Goiás, Março 2025.

O incêndio do Museu Nacional 

No dia 2 de setembro de 2018, o Museu Nacional foi assolado por um devastador incêndio que atingiu praticamente todo o seu acervo, estimado em mais de 20 milhões de itens. As coleções etnográficas, que eram as maiores do país, foram destruídas em quase sua totalidade, incluindo o Centro de Documentação de Línguas Indígenas. Após um mês de verdadeiro luto, as campanhas de resgate confirmariam algumas esperanças (Cardoso de Mello, 2020), embora o contexto deixado para o Setor de Etnologia e Etnografia era de perda irreparável.  


Incêndio no Museu Nacional. Foto: ALLIANCE/ALAMY LIVE NEWS.

As sólidas relações de confiança e respeito estabelecidas entre a aldeia Santa Isabel do Morro e o Museu Nacional/UFRJ ao longo do tempo deram lugar a uma iniciativa Iny-Karajá que desencadearia uma onda de doações por parte de outras comunidades e povos indígenas pelo país afora, tornando-se um marco na refundação do Museu Nacional e de suas coleções. Em um ato tanto de solidariedade quanto político, esse gesto inaugural se materializou na doação de uma boneca de cerâmica Iny-Karajá feita por Kaimote Kamaiura logo a finais de 2018, seguida da doação do conjunto do chefe Iny-Karajá entregue ao MN-UFRJ por Sokrowé Karajá, genro de Kaimote e o atual cacique tradicional de Santa Isabel do Morro. Denominado “as coisas do chefe” (wèdu aõna), o conjunto doado por Sokrowé para a refundação das coleções etnográficas do Museu Nacional está “profundamente relacionado com as especificidades da instituição da chefia tradicional Iny-Karajá”, e reforça no processo de reconstrução do Museu Nacional “a importância do Araguaia e do povo Iny-Karajá como protagonistas de processos históricos, sociais e políticos que envolve a história local, regional e nacional [no Brasil]” (Andrade, 2023, pp. 271 e 292). 


Kaimote Kamaiurá com boneca ritxoko feita por ela, Foto: Louise de Mello, Março 2025.

Documentação colaborativa e o reencontro dos Iny com os objetos ancestrais Karajá no Museu Britânico 

Entre maio e junho de 2024, o pesquisador principal do projeto, Rafael Andrade, desenvolveu a primeira fase de requalificação da coleção Iny-Karajá na reserva técnica do Museu Britânico, juntamente com os colaboradores do Museu Antropológico da UFG, Manuel Lima Filho, Lucas Yabagata e o arqueólogo Diego Teixeira. Além de fotografar todo o acervo do Museu Britânico, Rafael também analisou o acervo Karajá, do Pitt Rivers Museum da Universidade de Oxford, uma coleção pequena, embora relevante por sua antiga datação. 

A coleção Iny Karajá do Museu Britânico, em Londres, se destaca não pela quantidade de objetos, como em outros museus brasileiros e estrangeiros, mas pela raridade de alguns artefatos aliados ao seu valor histórico. Entre esses objetos, destaca-se uma lança do século XIX, que chama a atenção pelo tamanho, pela técnica utilizada em sua confecção e, de modo especial, pelo acabamento em três camadas de plumas de arara-vermelha, uma ave de grande importância para os Iny e a ponta feita de osso de animal, provavelmente de onça ou veado. Além dessa lança, também chamam a atenção algumas flechas confeccionadas com uma técnica muito apurada, como o encaixe de componentes, e alguns tembetás de quartzo do século XIX, que reforçam algumas análises etnográficas sobre a importância desses objetos na construção social do homem Iny-Karajá, aliados ao sistema de trocas com outros grupos da região, como os Tapirapé e os Kayapó. 

− Manuel Lima Filho, Diretor do Museu Antropológico da UFG. 

A segunda fase da requalificação foi realizada em setembro, durante a visita das lideranças Sokrowé e Ixysé Karajá ao Museu Etnológico de Berlim e ao Museu Britânico, junto a Rafael e Manuel. Foi a primeira vez que representantes Iny-Karajá visitavam as coleções em Londres em quase 170 anos. O trabalho de documentação e reinterpretação desenvolvido por Sokrowé e Ixysé foi acompanhado da cocuradoria de uma seleção de peças para a rotação da vitrine da Amazônia na Wellcome Trust Gallery do British Museum prevista para finais de 2025. Além disso, significou também o início de uma nova relação de colaboração e parceria dos Iny Karajá de Hawaló agora com o maior museu do Reino Unido.  

Engajamento da coleção de Sokrowé e Ixysé incluindo objetos co-curados para rotação do Caso Amazônia. Fotos: Louise de Mello, Diego Atehortúa e Santiago Valencia Parra.

Trabalho de campo na Aldeia Santa Isabel do Morro (Hawaló), Ilha do Bananal 

Oficinas em torno da coleção Iny-Karajá do Museu Britânico foram organizadas como parte do trabalho de campo realizado por Rafael Andrade na aldeia de Hawaló em novembro de 2024. A proposta do campo era dar conhecimento da coleção viabilizando a produção de um trabalho compartilhado sobre as classificações e interpretação da coleção Iny-Karajá do British Museum e proporcionar o diálogo a respeito das possibilidades de uso e aplicação dos conhecimentos que envolvem as coleções e as práticas de colecionamento nas atividades desenvolvidas no cotidiano da aldeia, como as associações Iny-Karajá para cultura e a escola indígena.  

A oficina com as crianças Iny-Karajá foi ministrada por Sokrowé Karajá, cacique tradicional da aldeia Hawaló e colaborador do projeto de requalificação das coleções Iny-Karajá do Museu Britânico. Sokrowé reuniu as crianças da aldeia em um espaço na sua própria casa. Em uma roda explicou para todos sobre o que se tratava a oficina, contou que havia viajado com sua esposa, Ixysé Karajá, até Londres na Inglaterra para conhecer pessoalmente a coleção que ele estava prestes a apresentar para as crianças. Contou a eles sobre o seu longo deslocamento, sobre a experiência de estar em um país estrangeiro e sobre como estavam guardadas as coisas que foram feitas pelos antepassados do povo Iny-Karajá. 


Desenhos inspirados nas coleções do Museu Britânico.

As crianças foram conduzidas por Sokrowé até uma grande mesa onde ele apresentou os cartões fotográficos da coleção Iny-Karajá. Tomando um cartão de cada vez, Sokrowé explicou sobre cada peça da coleção, em seguida entregou os cartões para circular livremente entre as crianças. Ao final da apresentação, todos ficaram livres para manusear os cartões e expressar suas primeiras impressões por meio de desenhos. A oficina foi um momento de troca, diálogo e transmissão de conhecimentos em que Sokrowé pôde compartilhar sua experiência no projeto com as gerações mais novas da aldeia.  

O trabalho de campo também buscou articular estratégias e orientar a pesquisa a partir das demandas mais objetivas e das propostas da escola indígena Maluá, coordenada e dirigida por professores indígenas de Santa Isabel do Morro, que tem interesse no tema das coleções e dos museus como meios para promover diálogos e discussões sobre a cultura, conhecimentos e saberes Iny-Karajá na formação dos alunos na aldeia. As fotografias impressas e plastificadas de todos os objetos da coleção Iny-Karajá do Museu Britânico foram entregues à família de Kaimote Kamaiurá e à escola Maluá com o intuito de que a coleção possa apoiar ações educativas e culturais na aldeia Santa Isabel do Morro.   

Sokrowé Karajá fala sobre a seleção de objetos da coleção do Museu Britânico em entrevista realizada na aldeia de Santa Isabel do Morro Hawaló por Idjaruma Kamaiurá Karajá em dezembro de 2024.

O ritual Hetohoky: do Museu à Casa Grande Iny 

A etapa final do projeto se concretizou durante o Hetohoky, o ritual de iniciação masculina Iny-Karajá que acontece a cada ano no mês de março, o qual contou com a presença da diretora do projeto do SDCELAR. O Hetohoky é um dos principais rituais do povo Iny-Karajá. O ritual marca a passagem dos meninos para a vida adulta, tornando-os aptos a frequentar o espaço dos homens, ijoina na língua Iny-Karajá. O ritual inicia com a liberação pelo cacique tradicional em setembro ou outubro e segue até o seu ápice, que acontece por volta do mês de março, quando o rio Araguaia chega no seu ponto mais cheio. Ao longo dos meses desde a liberação, uma série de atividades coletivas são autorizadas e organizadas pelas famílias envolvidas. Só na semana do ápice do ritual que é construído o espaço ritual, com a hetoriore (casa pequena), hererawo (corredor ritual) e a hetohoky (casa grande), formando as estruturas necessárias para a dramatização da passagem dos meninos para o mundo dos homens.

Ritual Hetohoky, março de 2025. Fotos: Louise de Mello

O momento ápice do ritual no qual a aldeia, suas lideranças e instituições se organizam para receber apoiadores e parceiros do povo Iny-Karajá se configura como um momento idôneo para que os resultados do trabalho desenvolvido ao longo de um ano de projeto sejam entregues formalmente e compartilhados. Imagens digitalizadas da seleção de peças na cocuradoria da coleção foram compartilhadas com Sokrowé e demais membros interessados de Hawaló, incluindo a ceramista Dibexia Karajá, o que gerou novas conversas e reflexões sobre as bonecas ritxoko e a continuidade dessa prática ancestral. Algumas bonecas, assim como um maracá e uma bolsa de palha de buriti foram alguns dos artesanatos comprados da aldeia para integrar a mesa sensorial na galeria 24 do Museu Britânico, próxima à exposição da Amazônia, visibilizando e aproximando a cultura viva Iny-Karajá para o grande público.  


Dibexia Karajá, Louise de Mello, Sokrowé Karajá e Idjaruma Karajá. Foto Rafael Andrade, Março 2025. 

Por fim, este projeto espera ainda poder contribuir para o fortalecimento de uma associação cultural comunitária que formalize a relação que os Iny-Karajá de Hawaló vêm construindo com museus no Brasil desde décadas passadas e, agora, pelo mundo afora em muitas décadas por vir. Uma contribuição inicial nesse sentido se deu por meio da doação de equipamento audiovisual para uso da futura associação. Esse equipamento foi utilizado pelo cineasta Idjaruma Kamaiurá Karajá para documentar a semana final do Hetohoky de 2025, incluindo as atividades finais que costumam ser fechadas ao público não indígena. Para o SDCELAR, a oportunidade de participar no Hetohoky acrescentou uma camada mais ao riquíssimo repertório simbólico desse rito anual, selando uma relação duradoura entre os Iny e o Museu Britânico e mais de uma amizade que igualmente se espera que perdurem no tempo.


Idjaruma Karajá. Foto: Louise de Mello, Março 2025.

 

Continue lendo 

ANDRADE, Rafael S. G. de. Wèdu aõna, as coisas do chefe: protagonismo indígena e experiência nas coleções Iny-Karajá do Museu Nacional. Tese (Doutorado em Antropologia Social). Programa de Pós-graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2023.  

CARDOSO DE MELLO, Louise. Arqueologia da destruição: o resgate do material arqueológico do Forte Príncipe da Beira após o incêndio do Museu Nacional. Vestígios, v. 14, n. 2, p. 5-26, 2020. (Edição especial: Conservação em Arqueologia Histórica). https://periodicos.ufmg.br/index.php

LIMA FILHO, Manuel F. (org.). Tesouros Iny – Karajá. Goiânia: Cegraf UFG, 2021: https://portaldelivros.ufg.br/index.php

LIMA, N. C. de; LIMA FILHO, Manuel F.; Leitão, R. M.; Silva, T. C. da. Bonecas karajá: arte, memória e identidade indígena no Araguaia. Dossiê descritivo do modo de fazer Ritxoko. Goiânia: Museu Antropológico da Universidade Federal de Goiás, 2011: http://portal.iphan.gov.br/uploads

MENDES, Diego T.; KARAJÁ, KAMAIURA KARAJÁ, Idjaruma. 2022. “Arqueologia Colaborativa com os Iny-Karajá: Ijyy (Narrativas) e Materialidades na Ilha do Bananal”.  Revista Habitus – Revista Do Instituto Goiano De Pré-História E Antropologia, 20 (2). Goiânia: 425-55. https://doi.org/10.18224/hab.v20i2.12724 

PACHECO de Oliveira, João. Prefácio: perda e superação. In: Santos, R. de C. M. No coração do Brasil: a expedição de Edgard Roquette-Pinto à Serra do Norte (1912). Rio de Janeiro: Museu Nacional, Setor de Etnologia e Etnografia, 2020.: https://jpoantropologia.com.br/producao

Colaboradores

Rafael Andrade 
Antropólogo e pesquisador colaborador do Setor de Etnologia e Etnografia do Museu Nacional (SEE/MN), Rafael Andrade foi pesquisador associado do SDCELAR entre 2024-2025. Doutor em Antropologia Social (MN-UFRJ), Rafael realizou pós-doutorado no Museu Antropológico da Universidade Federal de Goiás (MA-UFG) e foi consultor para a nova exposição temporária do Museu Nacional/UFRJ com experiência nas áreas de Sociologia e Antropologia em temas como etnologia, antropologia política, etnicidade, cultura material, coleções etnográficas e museus. 
Sokrowé Karajá
Ixydinodu (cacique tradicional) da aldeia Santa Isabel do Morro, uma das principais aldeias Iny-Karajá. Casado com Ixysé Karajá e genro de Kaimote Kamaiura.  É responsável pelos rituais da aldeia e conduz o principal ritual Iny-Karajá, o hetohoky, a iniciação masculina. Tem interesse no tema das coleções e desde que assumiu a chefia em Santa Isabel do Morro tem atuado como interlocutor de diferentes projetos relacionados a museus etnográficos e etnológicos.  
Ixysé Karajá
Artesã e especialista em adornos plumários. É casada com Sokrowé Karajá, filha de Kaimote Kamaiurá e de Maluaré Karajá que foi uma importante liderança Iny-Karajá de Santa Isabel do Morro. Junto a Sokrowé Karajá é parte da família que ocupa a instituição do cacique tradicional em Santa Isabel do Morro atuando na confecção da vasta cultura material imprescindível para a execução dos rituais na aldeia. Acumula longo histórico de diálogo e interlocução com museus etnográficos e etnológicos no Brasil e mais recentemente no exterior envolvendo temas como plumária, cerâmica, trançado e outros. 
Manuel Lima Filho
Diretor do Museu Antropológico da Universidade Federal de Goiás e professor associado da UFG. Manuel é pesquisador do CNPq e colaborador sênior da Universidade de Brasília, além de professor do Mestrado e Doutorado em Direitos Humanos na UFG, onde já coordenou outros programas de pós-graduação. Representante da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) no Comitê Gestor de Museus do Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), Manuel realizou estágios pós-doutorais e de pesquisa no Museu Nacional/UFRJ (FAPERJ), na Washington University of Saint Louis, EUA (Fulbright-CAPES), no The College of William and Mary, EUA, na Harvard University, University of Chicago, na Smithsonian Institution e na Rockfeller Library/Colonial Williamsburg Foundation (EUA).  
Idjaruma Karajá
Idjaruma Karajá é mestiço Karajá e Kamayura, e mora na Aldeia Santa Isabel do Morro – Ilha do Bananal, município da Lagoa da Confusão – TO. É cineasta e fotógrafo, formado pela Universidade Federal de Goiás e Universidade Federal do Oeste do Pará. Atua há 10 anos como Cineasta Indígena do povo Karajá, e também trabalha como Técnico de Enfermagem.

 

Lucas Veloso Yabagata
Pesquisador colaborador da Coordenação de Museologia do Museu Antropológico da Universidade Federal de Goiás (MA/UFG), Lucas é mestre em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFG, especializando-se em etnologia indígena, arte plumária e acervos digitais. 

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Publications related to women’s and maternal health with Wixárika communities by the author of this exhibition

 

Gamlin, Jennie B. (2013)
Shame as a barrier to health seeking among indigenous Huichol migrant labourers: An interpretive approach of the “violence continuum” and “authoritative knowledge”
Social Science and Medicine 97 75-81

Gamlin, Jennie B. (2023)
Wixárika Practices of Medical Syncretism: An Ontological Proposal for Health in the Anthropocene
Medical Anthropology Theory 10 (2) 1-26

Gamlin, Jennie B. (2020)
“You see, we women, we can’t talk, we can’t have an opinion…”. The coloniality of gender and childbirth practices in Indigenous Wixárika families
Social Science and Medicine 252, 112912

Jennie Gamlin and David Osrin (2020)
Preventable infant deaths, lone births and lack of registration in Mexican indigenous communities: health care services and the afterlife of colonialism
Ethnicity and Health 25 (7)

Jennie Gamlin and Seth Holmes (2018)
Preventable perinatal deaths in indigenous Wixárika communities: an ethnographic study of pregnancy, childbirth and structural violence BMC
Pregnancy and Childbirth 18 (Article number 243) 2018

Gamlin, Jennie B. and Sarah J Hawkes (2015)
Pregnancy and birth in an Indigenous Huichol community: from structural violence to structural policy responses
Culture, health and sexuality 17 (1)

Publicaciones relacionadas a mujeres y salud materna con comunidades wixárika, por la autora de esta exhibición

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