‘Fala Dos Fios e os Descaminhos de Nossa História Wapichana’ por Roseane Cadete Wapichana

22nd Dezembro 2023
BY ROSEANE CADETE WAPICHANA| POSTED IN Blog

Roseane Cadete Wapichana é uma historiadora indígena do povo Wapichana de Roraima, Brasil. Leia aqui o discurso que ela fez no evento 'Strengthening Threads' no Museu Britânico.

Durante minha residência no Museu Britânico e o encontro com nossos objetos e os dados catalogados nestes, ficou claro que L.H.T. Ashburner (1984) nos descreveu como uma “tribo” de ameríndios que vivem no Distrito do rio Rupununi. Nós Wapichanas não somos uma tribo, somos um povo. Nossa História não está apenas numa etiqueta nos objetos que estão guardados numa caixa. Nossa Historia vai além de etiquetas.

Ao escrever ao Museu Britânico Ashburner (1984) oferecendo um pequeno vocabulário que segundo ele tentou escrever o mais foneticamente possível, relata que observou a diferença de redes de fios de algodão, uma era mais aberta utilizada para viagens e outra mais fechada para ser usada em casa pela família. Em seu relato, ao saber de informações através de um amigo missionário que a região habitada exclusivamente dos Wapichana estava sendo ocupada por fazendas, ele descreve: ‘Não consigo pensar que a civilização os tenha realmente tornado mais felizes.’

Pergunto então:
_ Éramos tão infelizes antes da colonização?

Se minhas avós que eram irmãs eram tão felizes em seu território, por que tiveram que escolher entre uma ficar no Brasil e outra na Guiana Inglesa? Será que se tornaram mais felizes separadas por uma Fronteira e somente depois de 50 anos se reencontrarem para a despedida antes de voltarem à terra? Ou a Terra ficava mais bonita e feliz com fazendas e gados enquanto lágrimas das irmãs eram derramadas?

Esse foi apenas um dos exemplos de muitas violências que sofreu o meu povo.

O Estado, O Museu, a Escola são apenas poucos, dos tantos que violentaram a nossa cultura. Foram os principais responsáveis pelas fronteiras em nossas línguas, nossa memória, em nossos territórios.
Quero explicar que não é um navegador que hoje os reporta a fala dos fios desta história, mas nós mesmos nascidos e criados nesta região, Nós, Wapichana. Nossas raízes são extensas, como a árvore de caimbé que resiste ao fogo do verão dos lavrados.

Em nossa visita no Pitt Rivers Museum encontramos documentos datados de 1907 e nos questionamos: Por que só agora nos convidaram? Por que um século depois? ficamos tanto tempo esperando por este encontro. Mas preferiram guardar os espíritos de nossas vovós e vovôs guardados numas caixas. Guardada pra quem? Pra que mesmo?

Ao adentrar no Pitt Rivers Museum, ouvi a voz da vovó falar através de sua espiritualidade que o redemoinho do rio demorou muito para encontrar o mar e atravessar – me para seu encontro numa sala rodeada de outras essências wapichana, sentir o cheiro forte de fumaça das resinas exalando as duras marcas da colonização as quais cresci ouvindo e vivendo, as duras marcas da proibição do uso da nossa da língua, da nossa dança em agradecimentos ao sol, a lua, a natureza e ao criador de todas essas coisas quando a igreja nos dizia que era pecado. Sentir as duras marcas das disputas territoriais, da voz ecoando de quantas vezes meus avós ficaram a mira de um revolver do colonizador para manter as nossas terras demarcadas e garanti a nossa resistência para seguirmos nossa existência. Poder encontrar com a rede de fios e sentir o fio da flauta, o sopro dos abanos, o som do maracá, o rodopio dos fusos, é sentir que nossa memoria é doente a percorrer caminhos de cura. Foram os descaminhos de nossa Historia.

Foi como um encontro de netos e avós que acendeu a resina de maruai e nos benzeu, e nos fortaleceu para ecoar além das fronteiras que dividiu o nosso povo. É a fala dos fios.

Não, não é fazer uma reparação histórica, ou social. Que isto resolveria? Apenas ligar os fios de Canauanim x os fios do Museu Britanico? E o retorno disso tudo? Que teremos? Retorno pra quem? É sobre fortalecer esse fios. É trazer mais parentes para ensinar como fortalecer os fios, é como fazer fios fortes, fios de resistência. Trazer rezos e cantos. Defumação.

Se a escola e o museu por exemplo, surgem como aspectos de um projeto colonizador, por que não fortalecer os fios com estas Instituições para os caminhos das curas dos museus e comunidades?

Hoje no Brasil somos mais de 300 povos com cerca de mais de 180 línguas. O Brasil tem uma das maiores diversidades de língua do mundo. E isso deve de alguma forma compor o nosso campo de formação enquanto ser humano para buscarmos compreendermos que essas nossas memórias ancestrais fazem parte dessa humanidade. Representamos as narrativas orais ou testemunhos vivos de elaboração da memória coletiva. Buscamos articulações e debates históricos que nos permite perceber um encontro de um discurso plural. Que não é só do povo Wapichana, mas de todos os povos nativos dos quais este Museu guarda as memória . Não são os museus que vão resolver todas essas violências culturais aos nossos povos, mas podemos pensá – lo como um dos instrumentos de conexão da vida nas comunidades com esse mundo. Dois espaços totalmente distintos, mas conectados e articulados.

Os limites traçados pelos europeus nessa colonização nos remonta a fala dos fios no sentido de enterdermos que o território é local da fala, é a base onde se fortalecem os fios, fios da fala, fios do corpo, fios da memória, fios dos fios, fios da historia ,fios de resistência. Precisamos ajustar as relações e as torná-la menos assimétrica com a sociedade dominante e construir correlações de forças menos desiguais. Não seria uma das possibilidades de avançarmos na defesa dos direitos indígenas? E não deixar apenas como os “índios de museu”? Ou será que vamos continuar reproduzindo a perseguição aos aos sábios indígenas e aos velhos pajés?

 

Roseane Cadete Wapichana
Historiadora Indigena da Etnia Wapichana de Roraima.

Publications related to women’s and maternal health with Wixárika communities by the author of this exhibition

 

Gamlin, Jennie B. (2013)
Shame as a barrier to health seeking among indigenous Huichol migrant labourers: An interpretive approach of the “violence continuum” and “authoritative knowledge”
Social Science and Medicine 97 75-81

Gamlin, Jennie B. (2023)
Wixárika Practices of Medical Syncretism: An Ontological Proposal for Health in the Anthropocene
Medical Anthropology Theory 10 (2) 1-26

Gamlin, Jennie B. (2020)
“You see, we women, we can’t talk, we can’t have an opinion…”. The coloniality of gender and childbirth practices in Indigenous Wixárika families
Social Science and Medicine 252, 112912

Jennie Gamlin and David Osrin (2020)
Preventable infant deaths, lone births and lack of registration in Mexican indigenous communities: health care services and the afterlife of colonialism
Ethnicity and Health 25 (7)

Jennie Gamlin and Seth Holmes (2018)
Preventable perinatal deaths in indigenous Wixárika communities: an ethnographic study of pregnancy, childbirth and structural violence BMC
Pregnancy and Childbirth 18 (Article number 243) 2018

Gamlin, Jennie B. and Sarah J Hawkes (2015)
Pregnancy and birth in an Indigenous Huichol community: from structural violence to structural policy responses
Culture, health and sexuality 17 (1)

Publicaciones relacionadas a mujeres y salud materna con comunidades wixárika, por la autora de esta exhibición

Gamlin, Jennie B. (2013)
Shame as a barrier to health seeking among indigenous Huichol migrant labourers: An interpretive approach of the “violence continuum” and “authoritative knowledge”
Social Science and Medicine 97 75-81

Gamlin, Jennie B. (2023)
Wixárika Practices of Medical Syncretism: An Ontological Proposal for Health in the Anthropocene
Medical Anthropology Theory 10 (2) 1-26

Gamlin, Jennie B. (2020)
“You see, we women, we can’t talk, we can’t have an opinion…”. The coloniality of gender and childbirth practices in Indigenous Wixárika families
Social Science and Medicine 252, 112912

Jennie Gamlin and David Osrin (2020)
Preventable infant deaths, lone births and lack of registration in Mexican indigenous communities: health care services and the afterlife of colonialism
Ethnicity and Health 25 (7)

Jennie Gamlin and Seth Holmes (2018)
Preventable perinatal deaths in indigenous Wixárika communities: an ethnographic study of pregnancy, childbirth and structural violence BMC
Pregnancy and Childbirth 18 (Article number 243) 2018

Gamlin, Jennie B. and Sarah J Hawkes (2015)
Pregnancy and birth in an Indigenous Huichol community: from structural violence to structural policy responses
Culture, health and sexuality 17 (1)

Facebook
Twitter
LinkedIn
Pinterest
WhatsApp
Email